28 Março 2024, Quinta-feira
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O Portinho da Arrábida pelo olhar de Eduardo Lourenço em 1971

Palavras para serem lidas como introdução ou justificação de uma escolha

Numa altura em que é inevitável não evocar Eduardo Lourenço, nosso Mestre, não vale a pena repetir a sua biografia ou a sua lista de obras, tão difundidas com mais ou menos elementos por todos os tipos de media, dos mais institucionalizados aos outros. Tão pouco é útil tecer comentários acerca das suas obras mais mediáticas ou sobre as outras, uma vez que quem os quiser ler facilmente os encontra. E até poderá acontecer que qualquer leitor possa deparar-se com o produto da ignorância ou da má fé de alguns dos que surgem no espaço mediático. Mas adiante… O importante agora é ler e reler Eduardo Lourenço, encontrá-lo ou descobri-lo no prazer que essas leituras nos provocam.

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Lourenço visitou algumas vezes Setúbal, até porque tinha familiares a viver na cidade, nomeadamente o irmão António e a família deste. É, pois, natural que conhecesse alguns lugares da região. Escolhi partilhar convosco um texto pouco conhecido, um dos fragmentos de um diário publicado no número da revista Prelo que lhe foi dedicado em 1984, e que nos traz a Arrábida de inícios da década de 1970, usada quase como retrato do país. Trata-se de um texto precioso, a acrescentar à antologia de escritos literários sobre a região que todos guardamos, pelo menos mentalmente. A sua capacidade de observação, quase fotográfica, o seu sentido crítico acutilante, entrecortado de finíssimos momentos de humor, leva-o a terminar perguntando qual a revolução necessária para colocar o país nos carris da civilização. Quem naqueles dias passou pelo Portinho da Arrábida sentiu aquele ambiente e vivenciou cenas semelhantes, pelo que, certamente, apreciará esta brilhante prosa do Mestre. Quem não testemunhou a realidade tão deliciosa quanto profundamente escrita, provavelmente também.

Fátima Ribeiro de Medeiros
(IELT, NOVA FCSH)

Arrábida, domingo, 8 de Agosto de 1971

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O espectáculo começou com a primeira camioneta de Setúbal às sete da manhã. Com sonoridades variáveis durará até às dez da noite. É uma amálgama única de quermesse, romaria, peregrinação, festa desportiva, circo e batuque. Não é possível imaginar nada mais revelador da florida casticidade social do Portugal de 71.

Todas as idades, todos os trajos, todos os “gadgets” nacionais e internacionais aterram e se concentram neste cotovelo de uma só volta entre montanha e mar. A multidão borda a rua única e polui a praia com a mesma alegria que os criados dos raros restaurantes. Restos e lixo são atirados dos balcões diretamente ao mar para vir depois como cães dóceis relamber a orla da praia. “Lá em baixo está tudo cheio” repetem os polícias ventrudos que presidem a este baile de gente, camionetas e carros transistorizados. Os veraneantes descem com o garrafão e a lancheira de um lado, os transístores de outro, de goela aberta. Nalgumas camionetas gente nova faz exercícios de “talkie-walkie”.

Em várias línguas o estrangeiro atónito desfia o seu espanto “civilizado”. Talvez sinta que só por isso a viagem mereceu a pena… Por volta das onze e meia o corrupio da camionagem esmorece um pouco. Os carros começam a ficar cada vez mais longe. Em fato de banho, numa forma inédita de pedestrianismo, vários populares improvisam uma corrida em forma até ao Portinho. No meio do caos, com uma fleuma ancestral, a polícia continua a distribuir a penúria de espaço. Começa-se a sonhar com carros volatizáveis ou dobráveis, sobreposições delirantes à maneira de Sempé ou do nosso João Abel Manta. É um canibalismo turístico a meio caminho entre Breughel e Dante.

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Fenómeno universal com uma nota portuguesa que lhe confere sentido. É a revanche justa de um povo privado durante séculos de gestos não humilhados e que de repente acede ao tesouro inacessível da praia aos domingos, dos sábados pagos, das motoretas e dos mini-morris. São os herdeiros dos que trabalhavam há apenas meio século doze horas por dia, ou estavam disponíveis vinte e quatro horas sobre vinte e quatro, como as criadas.

O que na França começou em 34 só agora, em forma de vaga, rebentou aqui. Rebentou: expressão adequada para o que só se pode comparar a um dique que cedeu a uma torrente longamente contida. O êxodo semanal sem regras nem formas, com o seu crácter de violência submersa, de frenesim gestual, de exuberância – e hoje nem sequer o sol aquece – faz lembrar um desses fenómenos da natureza incontida como a de certos animais da Sibéria que em dadas épocas atravessam toda a Rússia para se precipitar nas águas do Báltico, onde acabam.

Quando chega o Verão o mesmo fenómeno nos empolga. Aqui não é a morte que se vem buscar, mas a vida não havida ou por haver. O espectáculo que não se lhe dá ou suspeitosamente se lhe oferece, o povo o dá a si mesmo, como outrora, quando esperava tudo de si. Literalmente: às três da tarde desembarcaram os nortenhos com uma banda popular. Mesmo debaixo da chuva que lhe agua a festa, as flautas e pífaros desenrolam as suas fífias justas. Não há força que os dome. Como quase toda a gente, não vieram para gozar um espectáculo, serra ou mar, mas para se dar em espectáculo. Com mais justiça: para ser o espectáculo. Gordíssimas matronas como soldados de licença, descem ao lado dos músicos, mais desinibidos que elefantes. Vieram para isso, para se desabotoar. Um dia destes vale todos os inquéritos reais ou imaginários. É um despimento nacional, ingénuo, colorido. Mais alegre que o Carnaval extinto.

Uma pátria secularmente vestida de negro biquiniza-se em termos de epopeia, refegos generosos alastram sobre fatos de banho para miss Mundo. A burguesia triunfou em toda a linha: os seus escravos copiaram-lhes as audácias e ultrapassaram-nas. Amanhã terão a elegância que é hoje o seu privilégio. É o embrião de outra humanidade amanhã mais natural. Por momentos o espectáculo popular tem ares de um novo “ça ira” sem alabardas nem lampiões. Entre o mini-morris e o raríssimo jaguar que se aventura nestas subversivas águas dominicais a diferença é menos que entre os que andavam “sans culottes” e as cadeirinhas dos aristocratas. Que 89 ajustará a nossa eterna conta atrasada com a História?

Eduardo Lourenço, “Espelho que volto com lentidão para mim…”, in Prelo, número especial sobre Eduardo Lourenço, Lisboa, I.N.C.M., maio, 1984, pp. 121-122 [fragmento 21.º de um diário].

Republicado em Maria Manuela Cruzeiro, Maria Manuel Batista, Tempos de Eduardo Lourenço – Fotobiografia, Porto, Campo das Letras, 2003, 1.ª ed., p. 145.
Nota: respeitou-se a grafia original do texto.

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