20 Abril 2024, Sábado
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Os guardiões da luz [reportagem em vídeo]

“Mestres de tudo e oficiais de nada”, os faroleiros são considerados os profissionais dos ‘sete ofícios’. João Coutinho, João Pires, Marcelo Serrasqueiro e Jorge Estêvão são actualmente os vigilantes das portas marítimas de acesso ao distrito de Setúbal

 

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As portas marítimas de acesso ao distrito de Setúbal têm em si olhos postos durante as 24 horas do dia, não fosse a região ter uma forte ligação à actividade piscatória. Considerados como os guardiões da luz, são os faroleiros quem guiam as navegações para terra em segurança, estando de serviço durante todo o ano nos faróis de Setúbal, do Cabo Espichel, do Forte do Cavalo e do Cabo de Sines. Em comum têm uma importante missão: não deixar a luz apagar.

É este o lema de João Pires, faroleiro subchefe responsável pela balizagem do Porto de Setúbal, há 24 anos, cinco dos quais passados na cidade sadina. A seu cargo, “se tiver de contabilizar”, tem mais de cem assinalamentos marítimos, divididos entre “os faróis da Azeda e do Outão, os farolins da Docapesca e do Pinheiro da Cruz e as dezenas de bóias actualmente em funcionamento, incluindo as que delimitam o Parque Marinho Luiz Saldanha”, começa por explicar a O SETUBALENSE.

O seu dia começa cedo, “bem antes de entrar ao serviço, com alguma actividade física”. Da sua actual residência, construída no antigo Farol da Amêijoa – o primeiro da cidade de Setúbal -, tem o privilégio de ter uma vista para o Estuário do Sado de cortar a respiração. Chegada a hora de se fardar, é tempo de “ver se alguma das infra-estruturas apresenta anomalias”, trabalho que vai planeando “semanalmente”. “Como estou só, no fundo tenho de garantir que os faróis e os farolins estão sempre operáveis. Os mais importantes são o da Azeda e o da Docapesca, que estão acesos durante todo o dia, uma vez que estamos a falar no enfiamento da entrada da barra do rio Sado”, refere.

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Ao fim-de-semana aproveita para estar com a sua família, que reside em Lisboa, mas mantém-se “sempre contactável”. “Estou sempre disponível para não deixar os equipamentos desligar. Como é lógico não tenho capacidade para controlar todos os assinalamentos em simultâneo e, nesse sentido, conto com o apoio de quem está no mar para lançar o alerta”.

Também sozinho trabalha o faroleiro João Coutinho, responsável pelo Farol do Forte do Cavalo, em Sesimbra, há cerca de um ano e meio. Ao abrir o portão da sua actual ‘casa’ a O SETUBALENSE, num dia que descreveu como “espectacular”, esclarece de imediato que “o nome correcto é Farol de S. Teodósio, que foi quem o mandou construir”. Só depois começa a contar como é a sua rotina. “Preencho em primeiro lugar o livro de serviço, no qual tudo deve ficar apontado. Posteriormente vou fazer pequenas vistorias ao farol no que diz respeito às baterias e à lâmpada. O meu trabalho, que é prevenir eventuais avarias que possam surgir, reparte-se em rotinas diárias, semanais, quinzenais e mensais de apoio à balizagem do Porto de Sesimbra. Tenho perto de 20 assinalamentos marítimos, que incluem, além do Farol do Forte do Cavalo, os farolins do Molho, situado na zona da doca, e os dois da Fortaleza de Santiago, que servem para os navios entrarem no Porto”.

Os materiais que o faroleiro de 53 anos utiliza nas suas reparações, “guardados na torre de vigia do Forte, a única estrutura que se manteve de pé depois do sismo de 1755”, têm de “ser pedidos à Marinha com um ano de antecedência”. É este prévio planeamento que lhe permite usufruir “dos fins-de-semana com a família”, que o visita de Alverca. “Eu só lá vou praticamente uma vez por mês. Apesar de ter residência, como a minha vida é estar sempre nos faróis, não conheço lá ninguém”, revela.

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Contudo, esta não foi a sua primeira opção “dentro da Marinha”. “Eu gostava mesmo era de andar nos navios, mas chegada a uma certa altura foi tempo de pensar se queria, ou não, formar uma família e criar alguma estabilidade. Optei por ficar em terra, mas até aos meus 27 anos aproveitei essa vida no Navio-Escola Sagres, que foi espectacular. Estive desde 1988 até 1994 a navegar, e tive a oportunidade de conhecer muitos países que, de outra forma, não me seria possível”.

No farol vizinho, instalado no Cabo Espichel, o quotidiano já é um pouco diferente, com a guarnição a ser composta por três faroleiros. Apesar de os dias nunca serem iguais, há práticas que, segundo Marcelo Serrasqueiro, chefe do Farol do Cabo Espichel, se repetem: o retirar de cortinas quando o sol se põe, para permitir que a luz alcance o mar, e o colocar de cortinas ao amanhecer, para não queimar os cabos eléctricos.

Com um toque delicado, o faroleiro de 1.ª classe manuseia o aparelho óptico com cuidado “para não oxidar o material”, isto depois de subir os 150 degraus que levam ao cimo da torre. Lá no alto, descreve como tudo funciona. “O Farol do Cabo Espichel tem duas lâmpadas, em que a que está mais na vertical é a que está de serviço, enquanto a outra está de reserva. Actualmente são motores que fazem rodar o aparelho. Existem dois, mas funciona um de cada vez”. Só assim é possível fazer com a que a luz seja vista a uma distância de 26 milhas, o que equivale a 48 quilómetros.

O aparelho, limpo duas vezes ao ano, demora 12 segundos a dar uma volta completa. Neste tempo lança três fachos de luz invertidos. No entanto, ao apontar para uma estrutura que faz lembrar um relógio, acrescenta que “antigamente não funcionava assim”. “Nos tempos em que não havia electricidade, era utilizada uma máquina de relojoaria, o que obrigava a que o faroleiro tivesse de subir mais ou menos de duas em duas horas para vir dar à manivela. Por isso é que neste farol estavam de serviço em simultâneo sete ou oito faroleiros”.

No outro lado do distrito, em território alentejano, é Jorge Estêvão, faroleiro de 51 anos, quem “veste a camisola” de chefe do Farol do Cabo de Sines. O faroleiro, juntamente com dois camaradas, tem “uma área muito grande para controlar, que vai da zona do Cabo Espichel até Porto Côvo, onde se encontram mais de quatro dezenas de assinalamentos”. Os dias são semelhantes, enquanto que as noites “são mais um estado de prontidão para o caso de algo falhar”. A única certeza que dá é que “aos fins-de-semana e feriados há certos afazeres que não são realizados, apesar de estar sempre um faroleiro de serviço”. “Todos estes equipamentos requerem reparações com um grau elevado de precisão. Não é qualquer um que procede à sua manutenção”, descreve, enquanto percorre as instalações.

O Farol do Cabo de Sines, segundo esclarece, “acaba por ser diferente dos outros por causa da construção que tem”. “Temos actualmente tecnologia do século XX com tecnologia de finais do século XIX, e tudo funciona na perfeição. O farol funciona com um sistema de rotação de um aparelho relativamente novo – da década de 90 – com um efeito electromagnético, que faz rodar o prato onde está o aparelho óptico. Assim, abrange uma área perto dos 360 graus e tem um alcance de 26 milhas, perto de 42 quilómetros”.

Da sorte do destino à herança de família

Sem se aperceber, o rumo da vida de Jorge Estêvão, natural de Vila do Bispo, no Algarve, levou a que também se tornasse faroleiro, seguindo as pegadas do seu pai e do seu irmão. A herança de família chegou em 1993, quando concorreu para o curso de faroleiro, depois de perceber que não conseguiria prosseguir com o seu desejo de se formar em jornalismo.

“Eu não fazia contas de vir para esta profissão. No entanto, o meu pai é destacado para Peniche, e como a minha mãe sempre o acompanhou, lá fui eu com o meu irmão. Cheguei convicto de que iria para jornalismo. Porém, o curso só havia numa escola longe e acabei por desistir da ideia”. Ao ponderar qual seria, então, o caminho que deveria de seguir, percebeu que a sua “outra aptidão era a electricidade”, mas com as bases do curso superior focadas na matemática, acabou por “enveredar para os faróis”.

No caso de Marcelo Serrasqueiro, actualmente com 49 anos, a escolha foi deixada um pouco ‘à sorte’ faz 26 anos. Enquanto concorria para faroleiro, não descartou as hipóteses de se “tornar Bombeiro Sapador ou GNR”. “Das três opções esta veio em primeiro lugar. Mediante isto não estou nada arrependido, pois sempre gostei da vida marítima. Defino-me como feliz, porque gosto do que faço”, reconhece.

“Defino-me como feliz, porque gosto do que faço” Marcelo Serrasqueiro, chefe do Farol do Cabo Espichel. Fotografia: O SETUBALENSE

Com o mesmo tempo de serviço, João Coutinho mergulhou no cargo de faroleiro depois de ter cumprido o serviço militar obrigatório. Apesar de ter ficado surpreendido, visto que “a Marinha é um pouco diferente”, considera que esta foi a sua melhor opção. “Não me via a desempenhar outras funções. Preenche-me bastante, principalmente ao saber que há pessoas que estão a depender do meu trabalho para estarem em segurança”.

Contrariamente, João Pires, faroleiro de 45 anos, admite ter-se sentido desde cedo cativado pela profissão, “por ser desafiante e de muita aventura”. “Era jovem quando fiz a recruta da Marinha. Quando entrei para os faróis, comecei precisamente no farol mais complicado de Portugal Continental, que é o Farol da Berlenga. Foi uma experiência interessante, que acabou por representar o que é ser faroleiro, porque estamos num sítio isolado, onde somos rendidos semanalmente”. No entanto, não colocou de parte a sua outra paixão, a arquitectura, considerando que as duas se complementam, uma vez que “os faróis são monumentos arquitectónicos muito interessantes”. Hoje, depois de se ter licenciado “na Faculdade de Arquitectura de Lisboa”, só lhe falta “praticamente a tese para concluir o mestrado”.

“O faroleiro é um mestre de tudo e um oficial de nada”

No currículo de um faroleiro devem vir descritos ‘os sete ofícios’, uma vez que este desempenha um pouco de todas as funções. Desde carpinteiro, electricista e pintor a pedreiro, serralheiro ou mecânico, o faroleiro é responsável por todas as pequenas intervenções que são necessárias fazer na infra-estrutura que suporta a luz.

Segundo o responsável pela balizagem do Porto de Setúbal, “é praticamente como se vê nos filmes”. “São indivíduos que estão isolados, sendo este também um bocado do preço a pagar por continuar com a profissão”, revela. Já o faroleiro João Coutinho classifica a profissão de uma forma particular. “O faroleiro é um mestre de tudo e um oficial de nada”, afirma, acrescentando que “é uma pessoa que tem de estar disponível para desempenhar qualquer tarefa”.

Antes de ir para a Marinha, Marcelino Serrasqueiro trabalhava na construção civil, por isso havia conhecimentos para a manutenção dos faróis que não tinha. Uniu-se a um camarada preparado ao nível da mecânica e a outro que era electricista. As suas mais mais-valias complementaram-se. Fotografia: O SETUBALENSE

Na opinião de Marcelo Serrasqueiro, chefe do Farol do Cabo Espichel, “nos faróis em que há mais do que uma pessoa é melhor, visto que se entreajudam, tanto a nível de motivação como de auxílio”. “Embora eu antes de vir para a Marinha trabalhasse em construção civil, havia luzes que eu não tinha. Acabei por me juntar a um camarada que estava preparado a nível da mecânica e a outro que era electricista. As nossas mais-valias vão-se, assim, complementando”.

Relações familiares centradas na profissão

A profissão de faroleiro simboliza quase que ser-se nómada forçosamente. Os profissionais, que são destacados para um novo serviço a cada quatro anos, colocam a ‘casa às costas’ e rumam em direcção ao novo desafio. Por este motivo, as suas relações familiares florescem já centradas no ofício.

O que facilita a aceitação da instabilidade “é a oportunidade de vivenciarem também a experiência”, conta João Pires. A sua família “habitou-se desde cedo porque tudo começou no início da relação”. “Estamos a falar de 24 anos de serviço, em que também já estiveram comigo a viver em faróis. Já está enraizado no nosso dia-a-dia”, esclarece. Enquanto isso, a família de João Coutinho acabou por compreender que esta é a sua “paixão”. “Fazemos os possíveis para tentar coordenar a minha atividade profissional com a vida pessoal. O mais importante é nós gostarmos daquilo que fazemos”.

O faroleiro do Farol do Forte do Cavalo combate a solidão com a ajuda da família, que o visita durante os fins-de-semana. Fotografia: O SETUBALENSE

O facto dos faroleiros se habituarem também ao sítio onde são colocados “ajuda à habituação da família”, desabafa Jorge Estêvão, uma vez que conhece bem essa sensação. “É complicado porque acabamos por estar sem nos vermos durante vários dias, mas antigamente era mais complicado porque não havia internet nem nada do género. Nos últimos tempos a minha mulher optou por começar a andar comigo, também porque o seu emprego assim o permite”.

Solidão ultrapassada entre convívios e passatempos

 Em nome da profissão, os faroleiros chegam a abdicar de muitos objectivos a nível pessoal, uma vez que não conseguem criar horários fixos ou rotinas. No entanto, a sensação de proteger a população prevalece. O tempo, que por vezes teima em querer passar devagar, é ocupado entre o convívio entre camaradas e a realização dos mais diversos passatempos. Nestes momentos, o isolamento quase que desaparece.

O faroleiro João Pires tira proveito da sua formação académica em arquitectura, ao desenvolver “maquetes dos faróis em latão, cobre e madeira”. “Tenho uma maquete do Farol do Cabo Espichel na Direcção de Faróis, e outra do Farol da Guia de Cascais. Qualquer dia hei-de fazer uma do Farol do Outão. Já o mosaico que está à entrada da minha residência no Farol da Amêijoa também fui eu que fiz, inspirado na forma como era suposto ser visto do mar, com um muro à volta”.

Também o faroleiro do Forte do Cavalo aprecia desenvolver trabalhos manuais, nomeadamente “restauros de peças muito minuciosas”. “Já estive destacado na Direcção de Faróis, onde estive no Polo Museológico com um senhor que me ensinou muito sobre restauro. Com ele acabei por ganhar o gosto pela ocupação”.

O isolamento e a monotonia são precisamente os defeitos que Marcelo Serrasqueiro aponta à rotina. “Prefiro levantar-me e pensar em ir à sala de serviço, onde já devem estar os camaradas para começar o dia de trabalho, do que estar sozinho”. Em Sines, o tempo livre de Jorge Estêvão é passado “a ouvir música ou a passear”, enquanto que “os outros faroleiros têm ocupações diferentes”.

“Os faróis nunca deixarão de existir”

A opinião é unânime: apesar da evolução das tecnologias, a profissão nunca deixará de existir. Existe, sim, uma adaptação aos novos tempos. “O assinalamento marítimo tem de acompanhar esta mudança, para poder continuar a satisfazer os seus utentes”, afirma, com toda a certeza, o faroleiro João Coutinho. “É essencial porque se existir uma falha num navio, por exemplo, o farol nunca falhará, continuando a ser fundamental para a navegação e para todo o tráfego marítimo que se faz na nossa costa”.

“Nenhum navio entra num Porto se os assinalamentos estiverem apagados. São tudo factores de segurança que não podem ser ultrapassados” Jorge Estêvão, chefe do Farol do Cabo de Sines. Fotografia: O SETUBALENSE

Seria um erro a profissão acabar, considera João Pires, visto que “os faróis são uma referência geográfica para quem anda no mar”. “No mar temos de ter pontos de referência, que são as luzes dos faróis, que dão alguma esperança a quem lá anda de poder chegar a porto seguro”. Neste sentido, o importante é que esta seja “ajustada aos dias de hoje, como tem acontecido com tudo”, reforça, dando como exemplo o facto de as lanternas dos faróis antigamente “serem de madeira”. “Há muitas evoluções que os faróis sofreram ao longo dos tempos, até ao nível da própria luz, uma vez que inicialmente era utilizado o azeite, depois passou para o óleo de baleia, depois para o petróleo e, por último, para a fonte de energia”.

Seguro de que as máquinas são falíveis, Marcelo Serrasqueiro comenta, igualmente, que é necessário manter alguém nos faróis. “Não é possível passar a ser 100% autónomo”. Esta ideia é replicada por Jorge Estêvão, que afirma que “a manutenção está sempre presente na sinalização marítima”. “Nenhum navio entra num Porto se os assinalamentos estiverem apagados. São tudo factores de segurança que não podem ser ultrapassados”, conclui.

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