20 Abril 2024, Sábado
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Reportagem | Entre a esperança e o pavor lançado pela besta

Residentes no Lar Montepio revelam sentimentos e dizem não ter memória de um cenário tão horrível. Tinham acabado de levar a bendita pica

 

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Tinha 14 anos e dois meses quando rebentou a II Guerra Mundial. “A angústia que então senti é a mesma que sinto agora. O Mundo está um pavor”, diz Maria Juliana Cabral, volvidas oito décadas e um par de Primaveras sobre o detonar do “horror” do conflito global que durou até 1945. Ela, que carrega uma ferida que nunca irá sarar. A colega, Olívia Bibe, é um pouco mais jovem. E dispara: “Isto é horrível! Com 87 anos não me lembro de uma coisa destas.” E tudo, aponta a octogenária, “por causa do vírus, dessa besta”. Horas antes, ambas tinham sido vacinadas contra a Covid-19 no Lar Montepio, onde residem, em Montijo.

A campanha do plano nacional de vacinação para utentes e funcionários das estruturas residenciais para idosos neste concelho da margem sul do Tejo iniciara-se na véspera, quinta-feira passada. Só nesta valência da União Mutualista Nossa Senhora da Conceição, onde o amarelo vivo da fachada é realçado pelo azul forte das caixilharias das janelas, foram inoculados 125 residentes e profissionais, entre as 9 e as 13 horas.

A toma, a Olívia, não custou nada. Ao contrário de Maria Juliana, confessa que ansiou pelo momento de levar a bendita pica. “Ai, não me doeu nada. Fiquei muito feliz de ser vacinada. É uma ajuda para ver se [o vírus] não chega cá a mim.” Tanto assim que até parece contar os dias para concluir o processo. “Agora em Fevereiro é a outra, não é? A segunda volta [dose]. Estou desejando levar”, atira, por entre risos, a mulher de Montemor-o-Novo, que veio residir para o Montijo “há 30 anos”.

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Vacinação no lar da União Mutualista Nossa Senhora da Conceição decorreu na manhã de sexta-feira

Ao lado, a colega Maria Juliana – Lolita, para familiares e amigos – ia ouvindo, atenta. Mas com sentimento diferente. Por si, o preparo líquido que anima a esperança no globo não teria sido sugado do frasco para ser injectado no seu braço. “Mas a minha nora pediu-me tanto… a minha nora (‘minha filha’) e eu somos unha com carne, somos amicíssimas, de maneira que acabei por dizer que sim.” A justificação para a renitência é simples e pertinente. “Tinha um bocado de receio, porque esta vacina é muito recente. Mas olhe: já cá está, pronto!”, desabafa a “alfacinha” de 96 anos, que entrou para o lar da Mutualista “há oito meses”, depois de ter residido “quase toda a vida na linha de Cascais”.

Porém, não está totalmente convencida. A apreensão inicial ainda lhe assola o pensamento, quando se fala na segunda dose. Reforça a justificação anterior e junta: “A vacina da gripe quando veio para cá matou pessoas.” Vale, no entanto, que se sente “bem”, poucas horas após ter sido picada. “Pode ser que sinta alguma reacção, mas por enquanto não sinto nada.”

Acompanhadas por Cláudia Bento, directora técnica do lar, Lolita e Olívia estão na sala onde momentos antes decorreu a vacinação. Espaço que liga à “Box das Emoções” – a União Mutualista foi pioneira no País a implementar esta solução para reactivar contactos entre utentes e familiares em período de confinamento. A mini sala instalada no exterior do edifício e apetrechada com cadeirão, secretária, lenços de papel, desinfectante e intercomunicador está separada do espaço interior por uma vitrina. Do outro lado, as duas utentes mostram-se mais do que inteiradas sobre o tema que domina a actualidade.

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A directora técnica Cláudia Bento no momento em que foi vacinada

A questão sem resposta e a irmã escritora

Se de alunas em exame se tratassem, até podiam dispensar auxiliares de memória sobre a matéria que passariam sempre com distinção. Sabem tudo.

“O vírus é uma coisa muito má, que está a atingir todo o Portugal, todo o Mundo. E não há maneira de ele abalar”, resume Olívia. Diz que tem “ouvido” e “visto na televisão as pessoas que estão acamadas, os hospitais que estão cheios”. E lamenta: “Tantas pessoas que têm falecido…” Ao mesmo tempo, faz cara feia e lança uma questão para a qual sabe que ninguém tem resposta. “Ai, quando é que a gente se vê livre disto?” E volta à carga, plenamente ciente do efeito nefasto da besta pandémica. “Isto é horrível. Foi a peste pior que cá apareceu. É a coisa pior que pode existir na vida. Não me lembro de uma coisa como esta”, sublinha, antes de pedir intervenção divina. “Deus Queira que isto acalme, que vá passando.”

Lolita assim o espera também. Antes já havia manifestado um desejo: “Vamos ver se chego aos 100 anos. Já faltou mais”. Logo a seguir veio uma revelação, repleta de carinho e orgulho. “A minha irmã já vai fazer 98. É muito conhecida no Porto. Escreveu vários livros infantis, com o pseudónimo Renata Gil, que às vezes estão no Plano Nacional de Leitura. O nome dela é Maria Sofia Dias Rodrigues.”

E o vírus? “Disseram-me que é um micro-organismo, uma molécula, que só depois de entrar no nosso organismo é que se transforma em vírus. Não estou bem certa, não sei a diferença entre vírus, micróbio…”, comenta.

Não é essa incerteza, todavia, que lhe tira o sono, apesar de se notar que gosta de beber conhecimento. A dúvida que a assalta encontra explicação na ponta da língua – nunca estudou medicina, defende. “Segui sempre os conselhos do meu pai e ele disse-me: ‘a vida de médico é muito dura para ti, tu és muito fraca’. Eu era fraquinha, só depois dos 80 é que comecei a engordar. Agora estou gorda”, conta. E, sempre espevitada, prossegue: “Fiz o 4.° ano de liceu e depois fui para o curso de piano. Tenho o curso geral de piano, que são seis anos.”

Sem perder o fio à meada, recupera o tema da pandemia. “Estou muito preocupada, não só pelos meus netos, bisnetos, filho… por todos de uma maneira geral. A parte financeira está um pavor. As empresas a irem abaixo. Isto está um horror”, lamenta. “E os jovens a viver neste ambiente? É pouco, dizer-se que isto é terrível”, vinca, num discurso tão fluído como imparável.  “Todos os dias oiço os noticiários e sofro muito. Onde é que isto vai parar?”

Lolita (à esq.) e Olívia Bibe sabem tudo da actualidade

Para já, há que ir cumprindo com todas as regras preventivas. Lolita e Olívia sabem-no bem. “A gente não pode andar por aí. Estamos no nosso quartinho, não saímos dali conforme eles mandam”, faz notar Olívia, com a colega a anuir: “Gosto de cá estar. Só não gosto de estar presa. Mas, não podemos sair daqui enquanto a pandemia não acabar.” O sentimento de solidão também vem a reboque dessa peste, a tal que Olívia, sentada na sua cadeira de rodas, apelida de besta.

Lolita necessita do apoio de uma bengala de quatro pontas e carrega uma ferida impossível de sarar. “Fui mãe cedo, aos 22 anos, tive dois filhos e há 11 infelizmente perdi um. Essa é uma dor que não passa nunca mais. Tenho o outro que mora no Montijo e foi por isso que vim para aqui, para o pé dele.”

E por entre acenos, lá partiram de regresso aos seus quartinhos, entre a esperança e o pavor lançado pela besta.

Adesão grande à vacina com alguns funcionários e uma utente do lar a ficarem de fora

Patrícia Soares fez o balanço à vacinação e à accão da instituição nos últimos tempos

No total, entre utentes e funcionários da União Mutualista Nossa Senhora da Conceição, foram vacinadas 172 pessoas. Mas registaram-se excepções, até porque a vacina não é obrigatória. Apesar de uma “adesão muito grande”, houve “alguns funcionários que a recusaram, por motivos de saúde”, e apenas “uma utente, pertencente ao lar”, não abrangida,  “porque a filha entendeu que não”, revela Patrícia Soares, membro do conselho de administração da instituição.

O balanço é feito logo após a conversa com Maria Juliana Cabral e Olívia Bibe. E é positivo, nâo obstante um ligeiro reparo. “Na quinta-feira, foram vacinadas 47 pessoas da Unidade de Cuidados Continuados e na sexta 125 do lar. Correu muito bem, apesar de já estarmos à espera desde o mês passado que houvesse a informação da data da vacinação. Avisaram-nos no próprio dia que iam começar”, assinala a responsável.

De Março até hoje, as tarefas nesta mutualista, que já conta 148 anos de história, “não têm sido fáceis”. A prioridade “tem sido sempre defender os utentes”, realça Patrícia, para de seguida soltar um desabafo.

“Tem sido uma ansiedade enorme para conseguirmos satisfazer e proteger, em termos de necessidades, os trabalhadores – de forma a nunca deixarmos de cumprir com as nossas obrigações enquanto entidade responsável e empregadora – e os utentes.”

Depois há as famílias dos utentes, que também têm passado por “um grande desgaste emocional”. Os afectos de um abraço ou um beijo estão há muito suspensos. “Por mais que nos peçam, a única situação de excepção é para doentes não Covid, que já se encontrem num quadro clínico terminal. Não deixamos de dar oportunidade às famílias para se despedirem dos utentes, mas mediante todas as medidas de segurança”, frisa.

Esta é uma doença de comportamentos e as medidas rígidas de prevenção são a única forma de a parar. Actualmente, a Mutualista “não tem casos”. Mas, apesar de toda a monitorização e regras apertadas que foram adoptadas, registou em Outubro “três utentes e seis funcionárias com Covid-19, na Unidade de Cuidados Continuados”. O caso, conta Patrícia Soares, foi controlado na instituição, onde não têm faltado acções de formação para os funcionários. “Algumas feitas até por elementos da Força Aérea da Base do Montijo. Os funcionários estão alertados para nos comunicarem ao mínimo sintoma. Imediatamente é feito o teste de despistagem”, afirma.

E por falar em testes, a Câmara Municipal acaba de atribuir mais um apoio de 50 mil euros para a realização de rastreios. “Não é a primeira vez. Esta ajuda da Câmara Municipal tem sido fundamental para conseguirmos controlar a situação como tem acontecido até agora. Com o apoio da autarquia, nunca parámos de testar. Fazemos testes semanais aos funcionários. São testes serológicos no sentido de se perceber se há alguém assintomático, porque esse é o maior problema”, conclui.

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